Uma conversa entre Burle Marx, Clarice Lispector, Deus e a tristeza
Percepção aguda de Clarice se confirmou meio século depois: Sítio Roberto Burle Marx foi eleito um dos jardins mais extraordinários do mundo
atualizado
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“Deus e Roberto Burle Marx fazem paisagem”. Assim, divinamente, Clarice Lispector começa o texto sobre o mais importante paisagista brasileiro (revista Manchete, 1968, edição 862).
A percepção aguda de Clarice se confirmou, mais uma vez, meio século depois, neste 5/2025: o Sítio Roberto Burle Marx (foto em destaque), em Guaratiba/RJ, foi eleito um dos 25 jardins mais extraordinários do mundo, em avaliação feita por especialistas para o jornal New York Times (edição de 6/5).
Quem conhece o sítio entende perfeitamente a justeza da escolha e a razão pela qual Clarice comparou, literariamente, o paisagista brasileiro ao Todo-Poderoso. Se não é Deus, Burle Marx beira a transcendência onisciente tantos foram os seus talentos – fazer jardins era apenas um deles.
Dos grandes nomes que participaram da construção de Brasília, o paulistano criado no Rio de Janeiro é, por certo, o mais multitalentoso. Foi pintor, arquiteto, desenhista, escultor, tapeceiro, ceramista, designer têxtil e de joias, tocava piano, cantava ópera, adorava cozinhar e receber amigos.
O sítio onde morou durante 21 anos, até a morte, é a expressão corpórea de Burle Marx. Sozinho, ele criou um jardim de 400 mil metros quadrados, esplendor verdejante em terreno de acentuada inclinação em área de manguezal, restinga e um restinho de mata atlântica.
Toda a riqueza de sua incansável e prodigiosa existência está lá nos quadros, esculturas, joias, cerâmica, as, louças, pequenas coleções de artesanato brasileiro. Tudo entremeado por um imenso viveiro a céu aberto no qual o artista cultivou não apenas a flora brasileira.
Burle Marx deixou em Brasília muito menos jardins do que gostaria. Ele que, antes mesmo do concurso do Plano Piloto, já participava da Comissão Nacional de Localização da Nova Capital, na primeira metade dos anos 1950.
Houve alguns impedimentos, mesmo Burle sendo amigo de Lucio Costa. Os dois se conheciam desde que eram vizinhos no Leme, Burle quase entrando na adolescência e Lucio sete anos mais velho. E foi o futuro arquiteto quem ajudou o amigo a entender que seu destino era o paisagismo. Até perto dos 90, o recluso Lucio Costa saía do Leblon e ia até o sítio visitar o dono a quem chamava de “o senhor de Guaratiba”.
Burle Marx era paisagista até nos cabelos que pareciam folhas de uma árvore feliz. Mas Clarice o achou melancólico naquela conversa de 1968. E ele explica que estava trabalhando muito e nem sempre conseguia o que almejava. “Com a idade a gente às vezes tem medo de não se realizar completamente. E é por isso que às vezes me sinto torturado e solitário.”
Prova de que o criador de paisagens monumentais era tão humano quanto o mais anônimo jardineiro. O que ele criou foi muito maior do que ele mesmo tinha noção – assim são os artistas.
E Clarice conclui: “As plantas de Burle Marx têm um sortilégio encantatório, mágico. O mundo de Burle Marx hipnotiza a alma com perfume de raiz, com sua aspereza de troncos, enleados que ficamos entre folhas, frutos e sementes ocultas”.
No próximo 4/6, Burle Marx faria 101 anos.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.