A morte de Mbaye pela PMESP mostra que a escravidão só foi redesenhada
O ambulante senegalês Ngange Mbaye morreu após levar um tiro de um policial militar em São Paulo
atualizado
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O genocídio da população negra e o tratamento desumano aos imigrantes africanos revelam que a necropolítica no Brasil é um projeto em curso — e que todos somos cúmplices enquanto silenciamos. Ngange Mbaye não morreu: foi assassinado pelo Brasil que odeia negros.
A imagem que chega de São Paulo, no coração do Brás, é cruel demais para ser apenas uma notícia de rodapé: um homem negro, senegalês, deixou companheira grávida de sete meses, foi morto por um policial militar após uma ação policial violenta. Seu nome era Ngange Mbaye. Trabalhava como ambulante, tentando sustentar a família como tantos homens e mulheres que o Brasil insiste em invisibilizar.
É simbólico e devastador que o episódio tenha ocorrido no Brás, bairro conhecido como reduto de imigrantes trabalhadores — principalmente africanos. Mbaye, como muitos de seus compatriotas, havia deixado seu país natal em busca de dignidade. Encontrou a mesma bala que atravessa os corpos da juventude negra brasileira todos os dias. A fronteira entre o genocídio doméstico e o desprezo ao estrangeiro negro é porosa. O que o Brasil faz com seus filhos, ele repete com seus irmãos: o controle, o silenciamento, a eliminação.
E antes que digam qualquer coisa sobre legítima defesa, é preciso lembrar: a polícia não usou o princípio da proporcionalidade. Ngange Mbaye segurava uma barra de ferro, tentando se proteger da truculência. Não estava armado com uma pistola, mas com o desespero de quem já sabia o risco de ser negro em solo brasileiro.
O Brasil da seletividade
A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil – segundo a ONU. A cada 23 minutos, uma família é destroçada. Quando esses dados aparecem frios em relatórios, é como se falassem de outra coisa. Mas são filhos, irmãos, mães, sonhos. É um genocídio contínuo, institucionalizado, naturalizado. O corpo negro é suspeito antes de ser reconhecido como humano. O corpo negro é algemado antes de ser escutado. O corpo negro é tombado antes de ser amparado.
Mas há um aspecto ainda mais cruel quando olhamos para a história dos imigrantes. O Brasil, este país que sempre teve obsessão pela branquitude, historicamente abriu as portas com tapete vermelho para europeus — italianos, alemães, espanhóis — sob o discurso eugenista de “melhorar” a raça. Era o projeto oficial de embranquecimento. Eles foram recebidos com políticas públicas, com terras, com incentivos, com cotas. Já os imigrantes africanos contemporâneos chegam sem qualquer e institucional, empurrados para as franjas da informalidade e alvos de uma violência policial que sequer precisa de justificativa. Basta o fenótipo. Basta a cor.
Ao matar Ngange Mbaye, o Brasil também assassinou a esperança de um recomeço. Não apenas a dele, mas de todos os que compartilham sua origem, sua cor, sua luta por uma vida digna em território que deveria acolher. O Estado brasileiro falha com os seus, e falha ainda mais com os que chegam de fora e encontram na nossa terra o mesmo racismo que os expulsou da dignidade em suas terras de origem.
O que o pensador Achille Mbembe define como “necropolítica” — o poder de decidir quem deve viver e quem deve morrer — é prática corriqueira por aqui. Ela estrutura a política de segurança pública, a mídia que desumaniza, a omissão cúmplice da sociedade. O genocídio da juventude negra não é uma tragédia espontânea, é um projeto. E como todo projeto, tem autores, beneficiários e consequências. Trata-se de uma herança maldita do período colonial, que nunca foi superado. Os porões da escravidão apenas mudaram de nome: agora se chamam cadeia pública, favela militarizada, abordagem seletiva, bala perdida que sempre acha o mesmo alvo. O racismo de Estado é uma estrutura, não um desvio.
E o que fazemos quando o sangue se mistura ao suor de quem veio buscar trabalho honesto? Calamos. Silenciamos. Esquecemos. É como se a vida de um africano fosse descartável, como se a morte de um negro não merecesse luto coletivo. No entanto, se o imigrante for europeu, se sua pele for clara, a cobertura será outra, a comoção será diferente, o tratamento será humano.
Esse país, fundado sobre a dor dos povos negros e indígenas, ainda precisa aprender o básico: que a vida de um homem negro — seja ele nascido em Salvador ou em Dakar — tem valor. Que todo corpo negro tombado pela polícia é um pedaço da nossa própria humanidade que se esfarela. É urgente que a política de segurança pública e por uma profunda revisão, mas mais urgente ainda é que o país encare de frente a ferida aberta de seu racismo estrutural. Porque não se trata de um caso isolado. Trata-se de um projeto de morte em curso. E enquanto aceitarmos isso em silêncio, todos seremos cúmplices.