Kasa Branca: uma obra-prima do cinema nacional
Sob a direção arrebatadora de Luciano Vidigal, o filme Kasa Branca transcende estereótipos e humaniza a masculinidade negra
atualizado
Compartilhar notícia

Kasa Branca, dirigido por Luciano Vidigal, é um marco no cinema brasileiro contemporâneo, tanto pela sensibilidade com que aborda temas complexos quanto pela excelência técnica e artística em sua realização. Este filme, inspirado em uma história real, é mais do que uma narrativa emocionante sobre um jovem e sua avó; é um retrato potente da negritude, da periferia e da masculinidade negra tratado de maneira responsável, sem cair em estereótipos ou maniqueísmos. Vidigal no comando de um longa-metragem, entrega uma obra que tem tudo para figurar entre os grandes filmes premiados nacional e internacionalmente.
A história acompanha Dé (Big Jaum), um adolescente negro da periferia de Chatuba, Rio de Janeiro, que enfrenta a notícia de que sua avó, Dona Almerinda (interpretada magistralmente por Teca Pereira), está em fase terminal de Alzheimer. Ao lado de seus inseparáveis amigos, Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), Dé busca maneiras de aproveitar os últimos momentos com sua avó, em uma jornada que revela os desafios, as complexidades e as belezas de uma vida vivida em comunidade.
Um filme que se a no morro, protagonizado por pessoas negras, sem armas, drogas ou violência, é uma revolução silenciosa no imaginário cinematográfico. Ele subverte as narrativas tradicionais que frequentemente associam essas comunidades à criminalidade e traz à tona histórias de afeto, sonhos e cotidiano. Neste espaço, o morro se torna palco de celebração da cultura, da coletividade e da resiliência. A câmera capta a beleza nas relações humanas, nos detalhes das casas coloridas, no sorriso das crianças brincando, nas músicas que ecoam nas vielas e no poder de uma comunidade que resiste ao apagamento sendo protagonista de sua própria história.
A direção primorosa de Luciano Vidigal
Luciano Vidigal, cria do Vidigal, não apenas dirigiu e roterizou, mas imprimiu sua alma em Kasa Branca. Sua experiência como ator e diretor, somada à vivência na periferia, transparece em cada cena, conferindo autenticidade e profundidade ao filme. Vidigal não é apenas um contador de histórias; ele é um arquiteto de emoções que conduz o espectador por um labirinto de sensações – da dor à alegria, do desespero à esperança.
Seu compromisso com uma narrativa ética e estética, protagonizada e criada por pessoas negras, eleva o cinema nacional a um novo patamar. Vidigal foge da exotização e do olhar voyeurista, tão comuns em filmes que retratam a periferia, e nos apresenta um universo em que a humanidade é a protagonista. Sua direção é uma aula de sensibilidade e respeito, provando que a inclusão de vozes negras em posições de comando é essencial para uma representação justa e plural no audiovisual.
Um elenco brilhante e em sintonia
Big Jaum, em sua interpretação como Dé, entrega uma atuação comovente e repleta de nuances. Sua sensibilidade ao lidar com a dor, o afeto e a responsabilidade familiar é de uma maturidade impressionante para um ator jovem. Ao seu lado, Teca Pereira, como Dona Almerinda, oferece uma performance monumental. Mesmo sem falas, a magistral Teca traduz a complexidade de sua personagem em olhares e gestos, tornando-se o coração pulsante do filme.
O elenco, composto por Diego Francisco, Ramon Francisco, Gi Fernandes, Kibba , Ingrid Ranieri, Dj Zullu e L7nnon complementa a narrativa com performances marcantes, mostrando o valor da amizade e da coletividade. A presença de veteranos como Babu Santana, Roberta Rodrigues, Otavio Muller, Leandro Santanna e Guti Fraga é um capítulo à parte: esses atores não apenas brilham em suas participações, mas também parecem ar o bastão com dignidade e generosidade para a nova geração, criando um equilíbrio perfeito entre experiência e renovação.
A fotografia como extensão da história
A direção de fotografia de Arthur Sherman é outro ponto alto de Kasa Branca. Sherman capta a luz da periferia com uma delicadeza rara, alternando entre a luminosidade quente dos momentos de afeto e as sombras que evocam os desafios e incertezas vividos pelos personagens. Cada enquadramento é uma pintura em movimento, revelando a beleza e a poesia do cotidiano da Chatuba. O uso sensível da luz e das cores não apenas enriquece a narrativa, mas também estabelece um diálogo visual com a alma do filme, tornando-se uma extensão de suas emoções.
Uma masculinidade negra humanizada
Um dos maiores acertos de Kasa Branca é a maneira como aborda a masculinidade negra. Dé, Adrianim e Martins são jovens que enfrentam desafios reais, mas o filme evita reduzi-los a arquétipos. Eles são complexos, cheios de contradições e possibilidades, refletindo a pluralidade da experiência humana. Vidigal constrói personagens que amam, sofrem e lutam, oferecendo uma representação rica e humanizada que é urgente e necessária no cinema brasileiro.
Ao tratar a masculinidade negra de forma não maniqueísta, o filme propõe uma reflexão profunda sobre os papéis atribuídos a homens negros na sociedade e no imaginário coletivo. Aqui, eles não são vítimas ivas nem figuras hipermasculinizadas, mas seres humanos completos, com medos, sonhos e vulnerabilidades.
A importância da representação e da autoria negra
Kasa Branca é uma prova contundente de como o cinema pode – e deve – ser uma ferramenta de transformação social. É essencial que pessoas negras não apenas sejam representadas na tela, mas também estejam no comando das histórias que as envolvem. Luciano Vidigal lidera um time criativo em que a negritude não é apenas um tema, mas uma força motriz, assegurando que as narrativas sejam contadas com ética e estética condizentes com as realidades e sensibilidades dos personagens.
A presença de um elenco e equipe majoritariamente negros confere autenticidade ao filme e rompe com as estruturas coloniais do audiovisual. Kasa Branca não é um filme sobre a periferia para agradar olhares externos; é um filme da periferia para o mundo, feito com orgulho e pertencimento.
Um filme destinado ao reconhecimento global
Luciano Vidigal já fez história ao ser o primeiro diretor negro a ganhar o prêmio de Melhor Direção no Festival do Rio. Com Kasa Branca, ele reafirma seu lugar como uma das vozes mais importantes do cinema nacional. O filme tem potencial não apenas para conquistar prêmios em festivais nacionais, mas também para figurar entre os destaques do cinema internacional, levando a potência cultural brasileira para além de nossas fronteiras.
Kasa Branca não é apenas um filme; é um marco. É uma celebração da vida, da memória, da coletividade e da resistência. É uma obra que emociona, transforma e inspira, mostrando que o futuro do cinema brasileiro está intrinsecamente ligado à diversidade e à inclusão. Luciano Vidigal e sua equipe entregaram uma obra-prima que já nasce clássica. Que este seja apenas o começo de um novo capítulo no audiovisual do Brasil.
A estreia será no dia 30 de janeiro nos cinemas.