Celebridades precisam ir além da exposição midiática no Carnaval
Presença de celebridades no Carnaval precisa ir além da exposição. Preparo, envolvimento e respeito pelo samba criam essência do espetáculo
atualizado
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Ela nunca gostou de samba, nunca gostou de Carnaval, nunca gostou do povo suado que canta na avenida como se a vida dependesse disso. Odiava a batida forte da bateria, achava vulgar o rebolado, dizia que tudo aquilo era uma grande bagunça. Mas um convite veio, e com ele uma oportunidade: um posto de destaque no desfile, flashes, contratos publicitários e engajamento nas redes. De repente, estava lá, com uma fantasia de pedrarias, sorrindo para as câmeras, fingindo uma devoção que nunca existiu. Na avenida, mal sabia o enredo, não cantava o samba, movia-se como se carregasse o peso da obrigação. No dia seguinte, colhia os frutos: seguidores, matérias exaltando sua “entrega”, convites para campanhas milionárias. No barracão, a comunidade voltava ao trabalho, empurrando o Carnaval seguinte sem que ela ao menos lembrasse o nome da escola que a fez brilhar por uma noite.
O Carnaval é um dos maiores espetáculos do mundo, mas também é um território de resistência, história e pertencimento. No entanto, o que se tem visto cada vez mais nas escolas de samba é a presença de celebridades que desfilam sem qualquer comprometimento real com a comunidade, o enredo ou a cultura do samba. Muitas dessas figuras desfilam sem saber sambar (ou com uma dança abstrata), sobem em carros alegóricos como meros enfeites, sem saber cantar o samba, sem entender o que estão representando e sem qualquer esforço para se integrar de fato àquela tradição.
É preciso questionar esse descaso. Em outras expressões artísticas, a exigência por preparação e excelência é evidente. Atrizes treinam meses para um papel, cantores se dedicam intensamente para dominar um gênero musical, bailarinos am a vida aprimorando sua técnica. Mas, no Carnaval, onde a dança, a música e a narrativa são fundamentais, há um comportamento displicente por parte de muitas figuras públicas. Não há ensaio, não há compromisso, não há entrega. O samba se torna indiferente para quem sequer se preocupa em conhecê-lo.
Enquanto isso, a história do Carnaval e das escolas de samba está repleta de personalidades que não apenas fizeram parte dessa cultura, mas a construíram com suas próprias mãos. Gente que começou na ala mirim, que cresceu dentro das quadras, que se tornou símbolo de uma comunidade. Sambistas que compam verdadeiros hinos, mestres-salas e porta-bandeiras que dedicaram a vida a essa arte, mulheres que carregaram escolas inteiras nas costas, costurando fantasias e mantendo a chama do Carnaval acesa ano após ano. Essas figuras, que são a verdadeira alma do samba, muitas vezes não recebem o mesmo destaque que celebridades momentâneas, cujo único critério de escolha parece ser a fama e a capacidade de gerar cliques nas redes sociais.
O problema não é a presença de famosos na avenida. A questão central é: se estão ali, que pelo menos saibam onde estão pisando. Se o argumento é que a presença dessas personalidades traz visibilidade para a escola, que essa visibilidade gere um retorno real para a comunidade. Que se traduza em patrocínios que financiem os barracões, em apoios estruturais para as crianças das alas mirins, em ações sociais que fortaleçam quem mantém o Carnaval vivo o ano inteiro.
O samba não pode ser tratado como um adereço temporário, um palco de vaidade onde se desfila sem alma e sem conhecimento. Não basta colocar uma fantasia luxuosa e posar para fotos se, no dia seguinte, a escola volta à realidade de dificuldades sem qualquer apoio de quem usou seu espaço para brilhar. O Carnaval não precisa de presenças vazias. Precisa de gente que entenda e respeite sua grandiosidade.
O samba tem dono. E os donos do samba não são os rostos que aparecem uma vez por ano na avenida. São aqueles que vivem e respiram essa cultura, que constroem essa festa com suor e paixão. Quem quiser estar ali, que esteja com respeito, com preparo e com verdade. O resto é performance vazia, e performance vazia não sustenta tradição.